sábado, 26 de fevereiro de 2011

UM ÔNIBUS CORTANDO O GUAÍBA


É isso mesmo. Não é metáfora, nem licença poé-tica, nem força de expressão. Estou dentro de um ônibus cortando as águas do Guaíba. Um belo ônibus fluvial para 120 passageiros, que acaba de deixar o cais junto ao terminal do trensurb. Diante de nós, as águas se encrespam ao vento sudeste. Rapidamente, o catamarã atinge sua velocidade de cruzeiro: 50 km/h. Pouco para uma estrada, muito para uma navegada sem sinaleiras fechadas, sem carros, motos, ônibus, caminhões e carroças para ultrapassar. No interior do barco, através das paredes envidraçadas, vejo desfilar a bombordo o perfil da minha cidade. Bombordo, o lado esquerdo, o lado do coração.

Porto Alegre é uma cidade linda. Mais linda quando vista ao entardecer, refletindo em milhares de vidraças o pôr do sol alaranjado e rosa. O ônibus fluvial avança em direção à cidade de Guaíba. Ali nasceu a Revolução Farroupilha, em 1835, e morreu Bento Gonçalves, em 1847, na casa de seus velhos amigos Gomes Jardim e Isabel Leonor. A casa do cipreste histórico é um ponto cultural e turístico que os porto-alegrenses e nossos visitantes pouco conhecem. Mas que irão conhecer, em futuro próximo, com muito mais facilidade, quando este ônibus fluvial estiver operando regularmente.

O sonhador que o mandou construir e o apresenta com orgulho é o empresário Hugo Fleck. Os viajantes, seus convidados, são todos escritores, meus alunos da oficina de criação literária que redigem um livro de contos bilíngue português/francês. O livro pretende apresentar Porto Alegre aos parisienses e Paris aos porto-alegrenses. O projeto se chama “Entre o Sena e o Guaíba”, exatamente porque as duas cidades são filhas de seus dois rios. Com a diferença de que o Sena, desde a antiguidade, nunca deixou de ser navegado pelos mais diferentes tipos de embarcações. E nós abandonamos o Guaíba, há meio século, em troca de uma ponte levadiça que hoje costuma ficar trancada lá no alto, contemplando milhares de veículos engarrafados e infelizes.

O ônibus fluvial chega agora diante do cais da cidade de Guaíba. Levamos exatamente 20 minutos nessa travessia. Mas não vamos desembarcar. Porque a obra no trapiche para embarque e desembarque de passageiros ainda não está pronta. E não depende da empresa proprietária do ônibus fluvial, e sim das autoridades locais. Pode levar mais um mês, dois meses, três meses... É ter paciência e dar volta para Porto Alegre, onde chegaremos em mais 20 minutos de uma bela navegada. Que custará, no futuro, a cada passageiro, apenas o preço de R$ 6.

Na volta, olhando para o lindo prédio do Museu Iberê Camargo, penso no futuro e acredito no sonho que estamos vivendo. Um dia, como em Paris, os ônibus fluviais de Porto Alegre nos levarão regularmente por toda a orla do Guaíba. E sua denominação indígena de “encontro das águas” voltará a ser verdadeira para todos nós.


ALCY CHEUICHE, ESCRITOR - ZERO HORA 26/02/2011

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