domingo, 8 de junho de 2014

MORRE O CAPITÃO

ZERO HORA 08 de junho de 2014 | N° 17822

MOISÉS MENDES


FERNANDÃO 1978 - 2014


ACIDENTE AÉREO MATOU na madrugada deste sábado um dos maiores ídolos da história do Inter



Repete-se como tragédia a perturbadora certeza de que a Copa é também o período em que referências do futebol se despedem do mundo. Fernando Lúcio da Costa era uma destas referências recentes. Fernandão morreu na madrugada deste sábado, como se não tivesse nem idade suficiente para ser tudo o que foi. E foi.

Com apenas 36 anos, este goiano-gaúcho já estava consagrado com as virtudes que técnicos, torcedores, comentaristas desejam de quem jogou futebol e continua sendo exemplo não só como craque. Morreu um atleta com qualidades raras nos campos brasileiros hoje – a inteligência, a capacidade de liderança, a imposição diante do adversário pelo refinamento técnico e pela dedicação intensa.

Morreu o capitão da maior conquista colorada. O moço que comandou, em 2006, o que os descrentes consideravam improvável, que determinou como se enfrenta o assustador Barcelona. E que depois mostrou a um Beira-Rio lotado a taça da grande conquista. Ninguém exagera se disser que Fernandão ressuscitou o Inter num de seus piores momentos. O moço com jeitão de boiadeiro chegou há exatos 10 anos a Porto Alegre.

Veio como uma aposta. Virou líder, capitão e amplificou tanto seu poder agregador que deixou de ser apenas uma referência de campo. Fernandão foi um caso exemplar de referência também fora do futebol. Pelo temperamento de diplomata, pelo envolvimento com a cidade, pela empatia com a torcida.

Em agosto de 2009, quando jogava no Goiás e criou-se uma controvérsia em torno de sua possível volta ao Inter, Fernandão fez declarações de amor não só ao clube, mas ao Estado. Gostava de Porto Alegre, do jeito gaúcho, da vida campeira:

– O que vivi aqui foi muito especial para mim e para o torcedor. Está na minha memória. Não é um objeto, algo material que se apaga ou se perde. Está no meu coração. E isso ninguém me tira nunca.

Acabou voltando, em 2011, como dirigente. Virou treinador em 2012. Submeteu-se, por temperamento, ao teste que muitos refugam. Se fracassasse, poderia manchar a própria história. Saiu sem que nada do que já havia sido fosse desfeito. Fernando era maior do que as desavenças que provocaram sua breve experiência como técnico.

RESPEITADO POR DUAS TORCIDAS

Morre o cara que exaltava seu lado família, em fotos que se repetiam com a mulher, Fernanda, e os filhos, Enzo, Eloá e Thainá. Fernandão construiu assim a imagem do ídolo genuíno, sem a escora de esquemas de marketing, sem forçação, sem nenhum esforço para ser admirado.

Não cometerá nenhum exagero quem disser, como já disse o ex-presidente do Inter Fernando Carvalho, que Fernandão foi o maior ídolo colorado. E não cometerá nenhuma blasfêmia o mais ardoroso gremista que assegurar, com a sinceridade de quem ama o futebol e seus craques, que Fernandão é, sim, um ídolo de todas as torcidas. Os deuses de plantão nas Copas, que sempre nos levam tanta gente boa na época dos Mundiais, devem saber o que estão fazendo.


QUEDA ÀS MARGENS DO RIO ARAGUAIA

MARCELO GONZATTO

HELICÓPTERO COM FERNANDÃO e mais quatro pessoas a bordo caiu por volta da 1h30min deste sábado, em Aruanã, no interior de Goiás. O ex-atleta ainda respirava quando os bombeiros chegaram ao local, mas não resistiu


Um dos maiores ídolos da história do Inter, habituado a fazer torcedores chorar de alegria em inúmeras conquistas, o ex-jogador Fernando Lúcio da Costa, mais conhecido como Fernandão, 36 anos, levou milhões de fãs a substituir os gritos de euforia por silêncio e lágrimas na madrugada deste sábado.

Fernandão, capitão colorado que conduziu o time gaúcho a conquistas como a Libertadores da América e o Mundial de Clubes em 2006, morreu em uma queda de helicóptero no município de Aruanã, no interior de Goiás, acompanhado de outras quatro vítimas.

Fernandão estava em uma praia do Rio Araguaia, localizada pouco mais de 10 quilômetros ao norte da região central da cidade de 8 mil habitantes, quando embarcou em uma aeronave Esquilo prefixo PT-YJJ de propriedade de um amigo empresário, que não se encontrava com ele. Segundo os bombeiros de Aruanã, estavam no helicóptero ainda o coronel da Polícia Militar Milton Ananias, Lindomar Mendes Vieira, Antônio de Pádua e Edmilson de Souza.

Segundo o sargento dos Bombeiros de Aruanã Sebastião Pereira dos Santos, Fernandão costumava passar finais de semana na cidade, onde teria uma casa, e se deslocar para as praias que se formam ao longo do Araguaia quando o rio baixa e deixa à mostra longos trechos de areia. É comum turistas se deslocarem para lá por barco ou helicóptero, já que a região é de difícil acesso.

TRAUMATISMO CRANIANO E FERIMENTO NA PERNA

O ex-atleta teria recém alçado voo no helicóptero, na companhia do piloto e de outros três passageiros, por volta da 1h30min, quando o helicóptero começou a cair e despencou a cerca de 150 metros de uma das praias do rio. A fuselagem se rompeu entre a cabine e a cauda.

Fernandão estaria retornando para o centro de Aruanã, segundo informações preliminares. Não havia registro, até a manhã de sábado, sobre qualquer explosão ou problema que tivesse provocado a queda. Também não houve relato de mau tempo que pudesse ter inteferido na viagem. Uma unidade do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) se deslocou de Brasília para o local a fim de dar início ao trabalho de perícia ainda durante a madrugada.

Santos ajudou a resgatar Fernandão. O sargento conta que, quando a corporação recebeu o telefonema avisando sobre o acidente, o ídolo ainda respirava. O ex-capitão foi retirado em uma canoa e transportado em uma viatura ao hospital da cidade, onde foi confirmada sua morte.

– Ele ficou bastante machucado, com traumatismo craniano e um ferimento na perna. Mesmo com 30 anos de trabalho e perto de me aposentar, fiquei bastante abalado porque ele era muito querido aqui na cidade – lamentou o sargento.

Milhões de colorados e fãs de futebol de todo o Brasil lamentam junto.



A IMAGEM DE UM PAI ZELOSO

DIOGO OLIVIER


Eu estava absorto, cabeça baixa, escrevendo nas posições de imprensa do Serra Dourada, quando escuto uma voz poderosa, cheia de energia, ecoando pelo estádio ainda vazio, antes do amistoso da Seleção contra o Panamá:

– Diogo!!!! Diogo!!!!

Olho para os lados e percebo, à primeira vista, apenas um homem alto gesticulando na grade que separava a área dos torcedores e dos jornalistas. Fixo o olhar mais um pouco e o sorriso grande, largo, generoso, uma de suas marcas registradas, facilita a identificação do dono daquela voz firme e decidida, a mesma que regeu o Beira-Rio na festa da conquista do mundo, em 2006: Fernando Lúcio da Costa, o Fernandão.

– Vi vocês ali e pensei: tenho que dar um abraço no pessoal, ainda mais aqui em casa – ele disse, apontando ainda para o Pedro Ernesto e o Wianey Carlet, a quem chamei para ampliar o nosso papo.

– Tudo bem contigo? – eu quis saber.

– Tudo ótimo. Trouxe as crianças para ver a Seleção.

Atrás dele estavam Enzo e Eloá, nascidos na França, vidrados no ambiente do jogo, os dois fardados com a camisa do Brasil. Conversamos mais um tanto sobre os quatro jogos da Copa que ele comentaria pelo SporTV, os planos de seguir como empresário e o arquivamento do projeto de ser técnico. E nos despedimos, que os gêmeos já chamavam pelo pai:

– Bom te ver, bom ver vocês. Dá um abraço em todo mundo lá.

Fernandão era um pai zeloso. Levava Enzo e Eloá para o Beira-Rio sempre que podia, como forma de ficar mais perto deles. Invadiu o hospital na França, exigindo que eles nascessem naquele instante, pois lá se tenta parto natural até o fim e sua esposa já não suportava mais as dores. Os médicos providenciaram a cesariana imediatamente. Foi capitão até na hora de garantir a vinda ao mundo de seus herdeiros. Amava os filhos mais que tudo.

Quando voltei ao meu assento de imprensa no Serra Dourada, olhei de novo e o vi comendo pipoca e tirando fotos com Enzo e Eloá, feliz da vida. Achei a cena tão bonita que tirei uma foto, de longe.

É a imagem que quero guardar de Fernandão, já que o destino me aprontou esta de ser um dos últimos a ter contato com ele. A imagem do homem feliz que ele sempre foi, sem rancores, sem jamais esquecer dos amigos, numa tarde de sol com os filhos.

A morte de um dos maiores personagens da história do futebol gaúcho e brasileiro, para sempre no coração dos colorados, é uma monumental injustiça. O destino está em dívida com todos nós, ao levar Fernandão tão cedo.


(Carlos Macedo/Zero Hora)

A COMOÇÃO

O Rio Grande do Sul acordou no sábado impactado pela notícia da morte do capitão do Mundial de 2006. Prefeitura declarou luto oficial de três dias.



A SAUDADE


ERIK FARINA

COLORADOS FORAM AO Beira-Rio e às redes sociais para lamentar a perda


O movimento de torcedores no Beira Rio após a notícia da morte de Fernandão começou por volta de 10h de sábado. Com olhos cheios de lágrimas, fardando uma jaqueta preta, cor do luto, André Schleich contemplava a bandeira colorada, que já estava a meio pau, sentado na beira da calçada.

– Estou arrasado. É um cara que daqui a 20, 30 anos poderia continuar inspirando torcedores e jogadores.

Carregando um ramalhete de flores, com uma branca e outra vermelha, e um pôster do ídolo, Leandro Borowski improvisou um memorial no centro de visitantes. Colou ambos com fita adesiva.

– Aí Fernandão! – gritou, para em seguida baixar a cabeça e soluçar baixo a perda do ídolo.

Borowski não foi o único a procurar o estádio para viver a dor da perda. Aos poucos, os colorados foram chegando à Avenida Padre Cacique a pé, de skate, bicicleta ou gritando de dentro do carro. Muitos, enrolados em bandeiras do Inter ou do Rio Grande do Sul, outros com fita preta pendurada na roupa, e muitos trazendo flores, cravos vermelhos e brancos.

Igor Rozo e Fábio Correa improvisaram uma homenagem: colaram uma tira isolante preta na bandeira, que agitavam em frente ao estádio.

– Minha mulher me acordou, contou, e eu nem acreditei. Liguei para o Fábio e combinamos de vir onde o Fernandão nos deu tantas alegrias – disse Igor.

Pelo Twitter, o prefeito José Fortunati avisou: vai propor que a Rua A, aberta ao lado do estádio para ligar a Padre Cacique à Edvaldo Pereira Paiva, receba o nome de Fernando Lúcio da Costa – Fernandão.

O velório do craque estava previsto para o final da tarde de sábado no ginásio do Goiás Esporte Clube, em Goiânia. Até as 12h45min, o corpo de Fernandão ainda passava pelos trâmites do Instituto Médico Legal, na Cidade de Goiás, antes de ser liberado para a família.




GRAÇAS A ELE, O INTER VIROU O QUE É


DAVID COIMBRA

Deixe-me falar algumas coisas sobre Fernandão. Coisas que ouvi e vi em uma única viagem, a mais importante delas, em 2006. Na saída de Porto Alegre, quando voava rumo ao Japão no avião do Inter, me acomodei numa poltrona ao lado da de Edinho, então um jovem em ascensão no futebol. Sempre bem humorado, sempre sorridente, Edinho lembrou das dificuldades do começo de carreira, quando foi enganado por um empresário e viu-se na Europa, sozinho, desempregado, com fome, zanzando por uma cidade onde não conhecia ninguém, exceto um homem: Fernandão. Pois Fernandão o acolheu como se fosse um pai, o ajudou como se fosse um irmão e fez com que ele recuperasse a confiança e a vontade de jogar futebol. Edinho disse considerar Fernandão um dos responsáveis por seu sucesso.

Mais tarde, outros jogadores revelaram o quanto Fernandão era importante para o time não apenas no campo, mas dentro do vestiário. Durante as preleções dos técnicos, ele dava a sua opinião e, muitas vezes, o time fazia o que ele achava certo. Quando Joel Santana treinou o Inter, não era raro de se ver Fernandão se contrapondo delicadamente a uma instrução do treinador e perguntando, com diplomacia:

– Será que não seria melhor se fizéssemos assim?

Os outros jogadores já sabiam: seria melhor se eles fizessem assim.

E na véspera da decisão com o Barcelona, num dia cinzento de Tóquio, eu estava no saguão do hotel em que a nossa equipe da RBS e a delegação do Inter estavam hospedados quando fui chamado por um esbaforido José Alberto Andrade.

– Vem ver! Eles estão em reunião lá em cima!

Era uma reunião no quarto do centroavante Alexandre Pato. Estavam o próprio Pato, que nada falava, o técnico Abel, que mais ouvia do que falava, e mais os, estes sim falantes, Iarley, Clemer e Fernandão. Silvio Benfica encontrava-se ao lado da porta, ouvindo tudo. Ouviu quando Fernandão recomendou:

– Precisamos marcar a saída de bola deles. É importante fazer isso. Os volantes deles precisam ser marcados.

Foi o que aconteceu. O próprio Fernandão se encarregou dessa tarefa, até sair de campo extenuado no segundo tempo. Graças a ele, à sua consciência coletiva, à sua inteligência, ao seu caráter, o Inter se transformou no que é.




INFORME ESPECIAL | Tulio Milman

OBRIGADO
.

A DOR

Só pode ter sido um erro do juiz. Expulsar Fernandão tão cedo de campo. O futebol e a vida nem sempre têm lógica. Saiu o craque, o líder, o vencedor, o campeão de tudo. E no lugar dele, não tem ninguém pra entrar.

Nem precisa. Nem é bom tentar.

Fernandão continuará, para sempre, a correr pelo gramado do Beira-Rio. A reger o coro das arquibancadas. A levantar troféus.

Fica em paz, capitão. Nada vai nos separar.

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